Queria escrever-te uma carta. Uma carta que fale por mim, com as palavras que sinto vontade de dizêr, mas não consigo.
Que te leve por mim a minha vontade de te não têr e que seja ao mesmo tempo uma carta e uma mensagem de despedida, completa, definitiva, tão definitiva quanto a morte.
Porque o que me corrói é desamôr na completa ausência de paixão dos sentidos que não se explica por palavras ditas mas se sente na carne nas noites assombradas pelo teu corpo que não desejo nem suporto, mas a que me obrigas.
Definitivamente não te odeio, simplesmente não consigo amar-te. E sei quanto queria que fosse diferente e que fosses capaz de entender isto. Mas tambem sei que seria pedir demais a quem em mim apostou práticamente a vida.
Amo sim o fruto que geraste no teu ventre, de uma forma única, redutora, apaixonada. E na contradição inultrapassável, entre o meu desamôr por ti e a avassaladora paixão por aquilo que me deste, acabo esta carta que nunca lerás depositando-a no lixo em que transformei os meus dias.
Afinal a tal maldição de Africa, que ao longo dos séculos tem levado que tantos homens e mulheres se agarrem como raízes a esta terra, existe ou é um mito?.
19.4.05
Carta de despedida que nunca vais lêr
2.4.05
Sonhos
Sábado á noite, noite morna em Maputo como tantas outras. 23 horas. Lá fora o ar aquece ao som das vozes alegres e descomprometidas de gente na procura do prazeres que só as noites de fins de semana nesta cidade podem proporcionar. Assumidamente só, no aconchego da velha poltrona ruída pelo tempo, olho as páginas de um Steynbek sem as lêr. Deixo-me levar lentamente pelo morfeu sem resistência. Afinal, a noite e a solidão têm destas vantagens.
Sem a noção de tempo ou espaço que só o sono nos proporciona, vejo-me envolvido numa alegre turba que avançando a passo lento pela marginal consome horas, sem destino defenido que não seja a procura de tudo e de nada, se imobiliza e emudece perante a aparição inesperada de uma mulher negra, belissima.
Com ela transporta o rufar quente de um batuque ritmado. A mulher inicia uma dança. Instintivamente a turba abre roda. Ela dança como se levitasse, em movimentos simples, amplos, belos, audaciosos. O corpo quase nú, esbelto e semi-coberto por um lenço ou uma capa aparece e desaparece perante mim, a cada movimento.
Á volta, sem sequer olhar, presinto dezenas de olhos tão espantados quanto os meus. Sentidos alerta, tentando roubar para si os fugazes olhares de fogo que a mulher pousa por fugazes instantes na turba espectante e silenciosa. Nos corpos imóveis e nos sentidos acessos, cada assistente interioriza os movimentos da deusa dançando com ela. A leveza e o ar confiante decobrem a inteligência, o corpo erótico de curvas e traços africanos revela em movimentos expontaneos e armoniosos toda a sensualidade natural de uma fêmea selvagem na sua plenitude.
O batuque não pára. O jogo da sedução anónima sem destinatário, tambem não. Incendeiam-se mais a cada momento os olhos e os sentidos. Como serpente possuída, a bailarina insinua-se a cada movimento, a cada passo, aos desejos ávidos e perplexos dos assistentes, em movimentos cada vês mais ritmados num crescendo arrebatador e dominador.
De repente no extase do som e do movimento a mulher arranca completamente a capa que lhe cobre o corpo. Rodopia agora núa no asfalto frio tornado palco e leito de emoções. Rodopiam, contidos a custo, desejos infames por ela. Rodopiam, incontrolados olhares lascivos aos lugares mais reconditos do seu corpo. Extasiada e electrizada a assistencia aplaude e grita, abandonando por momentos a visão contemplativa. Mas logo emudece, rendida á magia do momento.
Fixo-me na relação do som com a imagem, quando o rufar frenético dos tambores atinge o rubro... sinto-me macho em actividade. Perdido, mas macho cego pelos sentidos. Ao largo na baía, a lua espelha raios na água. Extensões fálicas vivas. Deixo-me envolver na admiração visionária deixando-me levar pelo doce do desejo ardente que de forma incontida me invade em ascendente.
A turba silenciosa arfa. Eles sedentos de desejo. Elas esfomeadas de inveja, admiração e raiva contida. A beleza da cena afasta os comentários. Apenas se condena o feio e obsceno. A invulgar e surpreendente aparição cria um ambiente quase mágico de extase contemplativo pelo que é belo. Apetece prolongar o momento eternamente.
De repente, o silêncio... a deusa daqueles momentos, sem que ninguem tenha sequer tempo de vêr para onde, desaparece nas sombras da noite, tão rápidamente como tinha aparecido. Como ela tambem o som frenético do batuque se dilui completamente. Por momentos ouve-se apenas o arfar do vazio, apenas preenchido com o inaudível bater frenético de corações arrebatados.
Lentamente, a noite, volta a ser o que sempre é em Maputo. Morna, com ligeiras brisas de vento norte, ora frias ora quentes que fazem abanar as palmeiras e transportam perfume das acácias até á marginal. Os espectadores turba, ainda mal refeitos da incendiária visão, em silencio, iniciam o descendente movimento do reencontro com a realidade e, em passo lento de sábado á noite, continuam a procura do tudo... e do nada..
Acordo. O sonho deixara-me ainda com o martelar do batuque cá dentro e sinais embaraçosos de excitação no corpo. Tento relacionar as imagens com algo da vida vivida. Os sonhos são sempre assim, deixam-nos a dúvida e a ansia de buscar uma realidade experimentada. Acabo por estabelecer a desnecessária relação. É que antes de me recolher á moleza da poltrona roída pelo tempo e á leitura de “A Um Deus Desconhecido”, tinha dolorosamente lido pela milésima vêz a ultima carta que me escreveste antes de partires e onde te procuravas justificar com palavras sem sentido, o porquê de tanta dádiva, seguida de tanto desamôr.. tambem tú fizeste rufar tambores e extasiaste com paixão os meus sentidos, para numa noite morna desapareceres, levando contigo a magia.
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