Foi no cinema, lembras-te? Les Parapluies de Cherbourg, um filme deslumbrantemente kitsch, tinha de ser. Entraste tarde, surgiste-me nas ultimas golfadas da música de Michel Legrand, já eu estava a instalar-me na delicia das lágrimas. Os filmes trágico-corriqueiros eram a minha purga semestral, apagava os fusiveis cerebrais, chorava na escuridão como uma menina e saía limpo e luzidio. Entraste tarde, caíste, ofegante, na cadeira ao meu lado. Depois disseste-me que foi nesse momento que os nossos olhos se encontraram. Mas eu não me lembro dos teus olhos. Lembro-me sim do odor do teu corpo, uma mistura excitante de rosas, canela e sexo. Talvez trouxesses ainda o cheiro de algum dos teus amantes – eras uma verdadeira Torre do Tombo passional e estavas sempre disposta a ir repescar uns dados esquecidos a uma pasta antiga.
Mas nessa altura eu nem sequer sabia isso. E nunca me aproximara tanto do teu corpo. O teu cheiro surpreendeu-me pela delicadeza e pela névoa erótica. Encostei o meu braço ao teu e comecei a transpirar. Sentia uma vontade violenta de me desmoronar em ti. Não, não era fazer amor. Fazer amor não existe, porra, o amor não se faz. O amor desaba sobre nós já feito, não o controlamos – por isso o sistema se cansa tanto a substitui-lo pelo sexo, coisa gráfica, aparentemente moldável. Tambem não era foder, fornicar, copular – essas palavras violentas com que tentamos rebentar o amor. Como se fosse possível. Como se o amor não fosse essa fornicação metafisica que nos diz respeito – sofremos-lhe apenas os estilhaços que nos roubam vida e vontade. Eu queria oferecer-te o meu corpo para que o absorvesses no teu. Para que me fizesses desaparecer nos teus ossos. Eu educado no preceito alimentar de que os rapazes comem as raparigas, depois de uma vida inteira de dominio dos talheres queria agora ser comido por ti. Queria entregar-me nas tuas mãos.
E entreguei-me – terás percebido isso? Deixei de saber quem era. Continuo a precisar de ti para existir. Para dormir. Um dia confessei-te que tinha insónias. Terei chegado a explicar-te que as Variações Goldberg de Bach nasceram de um pedido do Conde Kaiserling, que lhe solicitara um tratamento para as insónias? E que por isso Bach escreveu as variações de acordo com uma receita que exigia «uma invariabilidade constante da harmonia fundamental»? Conversávamos pela noite dentro em tua casa, tú já mal conseguias manter as palpebras levantadas. Pedi-te que me deixasses ficar mais um bocadinho, porque me custava entrar em casa sem sono. Pegaste-me na mão,
- anda comigo!
e levaste-me para a cama. Enroscaste-te em mim e começas-te a coçar-me as costas muito devagar. Dormimos muitas e muitas vezes assim – e nunca, nem por um segundo, pensámos em fazer aquilo a que os inocentes chamam sexo. Falámos muito disso sim – desse acto a que as pessoas vão chamando sexo ou amor consoante as conveniências e as circunstancias. Esse acto que as pessoas vão repetindo até á mais exaustiva solidão. Nós não podiamos prescindir um do outro. Não podíamos entrar no infinito jogo finito do corpo. Derramei sobre a tua vida, por incontáveis noites, os meus breves amores perfeitos, pormenor a pormenor. E tu derramas-te sobre a minha as tuas paixões impossíveis, impossíveis de apagar. Desejo-te tanto, ainda.
Mas nessa altura eu nem sequer sabia isso. E nunca me aproximara tanto do teu corpo. O teu cheiro surpreendeu-me pela delicadeza e pela névoa erótica. Encostei o meu braço ao teu e comecei a transpirar. Sentia uma vontade violenta de me desmoronar em ti. Não, não era fazer amor. Fazer amor não existe, porra, o amor não se faz. O amor desaba sobre nós já feito, não o controlamos – por isso o sistema se cansa tanto a substitui-lo pelo sexo, coisa gráfica, aparentemente moldável. Tambem não era foder, fornicar, copular – essas palavras violentas com que tentamos rebentar o amor. Como se fosse possível. Como se o amor não fosse essa fornicação metafisica que nos diz respeito – sofremos-lhe apenas os estilhaços que nos roubam vida e vontade. Eu queria oferecer-te o meu corpo para que o absorvesses no teu. Para que me fizesses desaparecer nos teus ossos. Eu educado no preceito alimentar de que os rapazes comem as raparigas, depois de uma vida inteira de dominio dos talheres queria agora ser comido por ti. Queria entregar-me nas tuas mãos.
E entreguei-me – terás percebido isso? Deixei de saber quem era. Continuo a precisar de ti para existir. Para dormir. Um dia confessei-te que tinha insónias. Terei chegado a explicar-te que as Variações Goldberg de Bach nasceram de um pedido do Conde Kaiserling, que lhe solicitara um tratamento para as insónias? E que por isso Bach escreveu as variações de acordo com uma receita que exigia «uma invariabilidade constante da harmonia fundamental»? Conversávamos pela noite dentro em tua casa, tú já mal conseguias manter as palpebras levantadas. Pedi-te que me deixasses ficar mais um bocadinho, porque me custava entrar em casa sem sono. Pegaste-me na mão,
- anda comigo!
e levaste-me para a cama. Enroscaste-te em mim e começas-te a coçar-me as costas muito devagar. Dormimos muitas e muitas vezes assim – e nunca, nem por um segundo, pensámos em fazer aquilo a que os inocentes chamam sexo. Falámos muito disso sim – desse acto a que as pessoas vão chamando sexo ou amor consoante as conveniências e as circunstancias. Esse acto que as pessoas vão repetindo até á mais exaustiva solidão. Nós não podiamos prescindir um do outro. Não podíamos entrar no infinito jogo finito do corpo. Derramei sobre a tua vida, por incontáveis noites, os meus breves amores perfeitos, pormenor a pormenor. E tu derramas-te sobre a minha as tuas paixões impossíveis, impossíveis de apagar. Desejo-te tanto, ainda.
Inês Pedrosa - "Fazes-me Falta" - Publicações Dom Quixote