29.10.08

Porquê?


A Princesa do alto dos seus quatro quase cinco anos com pressa de serem muitos mais, saca do morteiro da curiosidade e dispara-me na cara sem aviso prévio, o centésimo porquê? embaraçante da semana:


-" papy! estou preocupada. Tu achas normal porquê tú nunca me deste uma camisinha e as pessoas que não usam camisinha apanham doenças e podem morrer! Porquê tú nunca ficas doente nem morres? porque tu usas camisinha e eu não uso e se eu ficar doente porque não uso, não tens pena de mim? Porquê papy? "


Engasgado garanto a mim mesmo que vou deitar o televisor pela janela do 3º andar.


9.10.08

Crónica de um fim anunciado III


Depois de mais um dia sem avanços naquilo que è verdadeiramente importante, com a cabeça completamente oca de pensar estratégias inuteis, tento adormecer com os costados colados à madeira do fundo gasto do velho sofá. A coletanea de poemas do genial panasca do Pessoa prolonga-me a insónia atravéz do mais intrigante e mórbido dos seus fantasmas:
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.
O que quis?
Tenho as mãos vazias,
Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstrata.
O que vivi? Era tão bom dormir!
Alvaro de Campos
Isso mesmo. Vou tentar dormir e não pensar muito nas palavras deste desenraizado. Amanhã fecho-o a ele aos irmãos e ao desnaturado do pai dentro da capa grossa do livro e não vou deixa-los sair de lá nem para respirarem. Prometo-me. Tenho tanto em que pensar e estes gajos a foderem-me a cabeça.

8.10.08

Crónica de um fim anunciado II


Encruzilhado e expectante agacho-me pela milionésima ocasião, na esperança de uma resposta coerente. Consigo que se sente a meu lado. Suavemente peço-lhe que me escute. Solectro as palavras antes ensaiadas sem nunca alterar a vóz nem a olhar nos olhos. Enfatizo as razões e o sentimento. Evito referir qualquer possibilidade de cobrança ou pagamento de favôr. Existe uma coerência lógica na sequência dos argumentos (penso eu). Rebatível por certo, mas lógica e clara. Termino com um pedido de resposta mesmo que adiada. Sim ou não, olhando-a ostensivamente nos olhos. Mal debita as primeiras palavras revejo o mesmo filme de sempre. Nada do que levei horas a ensaiar e breves minutos a resumir, foi entendido ou muito provávelmente sequer ouvido. Absurda conversa de surdos. Invade-me a raiva que pede para perder a compustura e as estribeiras. Cerro os punhos e páro tambem de escutar. Contenho-me com esforço á custa de muitos batimentos cardiacos extra. Vou perder-me em mais horas de ensaios. Insistirei argumentando mesmo sabendo que para partir esta rocha acabarei por ter de usar dinamite. Aproveito um momento de distração da Princesa e saio para voltar o mais tarde possível. Não desistirei nunca.



7.10.08

Crónica de um fim anunciado - I


“A música da dor é tão repetitiva que, ao fim de algum tempo, todos os seres concretos que nos torturaram se misturam até formar um pequeno céu de desespero que nos envolve como uma redoma.”
Inês Pedrosa - "Fazes-me Falta"


É dentro dessa redoma feita cárcere que me anuncio. O elemento desespero fica cada dia mais fundo, pesado e denso. Sinto-me empurrado para a porta libertadora. Ainda não respiro mas já vejo a luz.