8.2.05

Cesaltina julgada!


Cesaltina pela cidade rodava queimando tempo e horas. Sábado morno com tarde a chegar ao fim. Calcorreara a marginal, subira a Julios Nyerere e percorrera toda a 24 de Julho desde o Piripiri ao Alto Maé. Mas não sentia as dores nem as horas. Apenas cada olhar ou cada gesto na sua direcção lhe faziam recordar um sentimento de culpa que teimava não a abandonar. Tentava apagar da memória os olhos tristes dos três filhos que deixara em casa pela manhã, sem sequer com eles trocar uma palavra e pensar aquilo que lhes iria justificar pelas longas horas de ausência. Tentava ainda sem o conseguir parar o mêdo. Um medo interior profundo e carregado de raízes seculares herdadas dos seus antepassados. Esse estranho e manipulador sentimento que a tinha manietado durante os anos de casamento e que agora havia conseguido empurrar até á porta mas que se recusava a sair completamente de dentro dela.

Ao entrar na esventrada rua do bairro da Malhanga que conduzia a casa, olhou a montra decorada com o amarelo da Laurentina mal combinado com o vermelho berrante das cores da Coca-Cola. As vozes alteradas pelo calôr das discussões inuteis á volta de intrigas, banhadas, futebol e politica, faziam adivinhar que estaria bem frequentada nessa tarde.

Decidiu transpor a porta de entrada. Todas as vózes emudeceram á sua aparição como se ali tivesse entrado um fantasma. Sentiu-se nitidamente o atordoador silêncio acusatório. Teve a completa consciência de que aquele momento representava o primeiro frente a frente com o tribunal popular do bairro e dali sairia ou condenada perpétuamente ou com as grilhetas bem mais alividadas..

Na noite anterior, a partir da esplanada daquela espelunca, todos os presentes tinham testemunhado e comentado o abandono do lar com parca trouxa, de Lucas seu marido de mais de uma década, vergado a um nunca visto silêncio e a uma humilhante retirada estratégica.

Anos longos de humilhações, privações e muita miséria mal escondida, provocados por um marido déspota, militante do partido da vanguarda e da libertção desde os anos da guerra da independencia, autoritário pela razão plena da verdade única que a reduzia a ela e a todos aqueles que ousassem discordar dele a potenciais alvos a reeducar numa qualquer mata do distante Niassa.

Eterno secretário do bairro, mais agarrado ao lugar que lapa, justiceiro carrasco de todas as causas comunitárias, impecável dentro das camisas alvas á custa de muita barrela e apoiado nos sapatos á muito a justificarem contentor do lixo mas impecávelmente brilhantes, arregimentára á sua volta um coro de respeitabilidade monocórdica e cega. Temido pela vizinhança dele dependente, ninguem ousava colocar em causa uma sua opinião muito menos uma decisão.

Cesaltina era a única pessoa que pensava diferente. Sentira na carne centenas de vezes a crueldade mal escondida ao mundo daquele com quem casara. Vergara-se á custa de muita porrada. Mas vergara-se e calara-se sem se dobrar. E sabia que naquele momento ao transpor a porta daquela cervejaria seria inquisitóriamente julgada por todos. Sentiu cravadas nas costas facas afiadas e na cabeça pedradas anónimas. Como poderiam eles entender o que levou a mulher do todo poderoso camarada secretário Lucas a deitar na cansada cama familiar, um amante. E ainda por cima um chefe camarada, mais camarada chefe que o camarada secretário chifrado. Fora esta a razão que o obrigara pela primeira vêz na vida a aceitar uma derrota privada. Rendido á mesma disciplina doutrinária cega com que submetera toda a sua vida de militante partidário aqueles que dele dependiam para qualqer e todos os assuntos sociais do bairro.

De pé junto ao balcão, Cesaltina pediu um refresco com muito gelo. A moça atrás do balcão sujo, empurrou-lhe um copo florido para a frente e com perícia inata abriu e depositou-lhe a garrafa ao alcance da mão. Arrefecia por dentro com gelo o fogo que aqueles olhos lhe ateavam na alma. De costas para a sala continuava a sentir o ensurdecedor silêncio. Lentamente, abriu a bolsa e retirou um inusitado maço de Palmar e fósforos.

Puta!!, ecoou em fundo repetindo-se nas paredes encardidas, quebrando o silêncio....... puta e cabra!!, voltou-se a ouvir....

O sangue rápidamente lhe invadiu as faces de ébano. Deixou que a acusação se extinguisse nos seus ouvidos, bebeu um gole da gelada coca-cola e aspirou lentamente o fumo do cigarro. Rodou nos tacões gastos enquanto expirava a azulada nuvem de fumo para bem alto. Levantou a cabeça e sorriu de forma desafiadora, deixando cobiçar os alvos dentes enquadrados pelos sensuais lábios grossos. Olhou os presentes nos olhos um a um durante alguns segundos. Tinha a consciência, que para aquela turba nunca valera mais que a submissa mulher do déspota secretário. Mas, à custa deste desafio era a partir daquele instante mais um amontoado de carne para usar. Nenhum daqueles pseudo-machos meio ébrios teria em mais algum momento a capacidade para a classificar como uma mulher honrada. Menos ainda como sêr humano respeitável.

Naquelas mentes ôcas apenas era mulher puta de um respeitável homem do partido, traído com um seu camarada superior e na sua própria cama. Logo, tambem ele cabrão desclassificado mas sem culpa própria. Faziam das dores de Lucas as suas, fechando à memória os gritos suplicados bem alto por ela e pelos filhos vezes sem conta ao longo daqueles anos. Debaixo de sôcos e injurias inclassificáveis e completamente imerecidas.

E porque o traído marido era pessoa de bem, ela era de nada. Ou melhor, era classificada de puta e de cabra!!.

Uma escafiada nota de dez mil meticais deixada ao abandono em cima do balcão foi o justo preço que pagou pelo prazer da pedra de gelo que lentamente se derretia na sua boca e pela interior certeza de naquele momento se sentia compensada e livre, assumindo-se como mulher e como mãe. Se na tarde noite anterior, perdera a dignidade como esposa mas ganhara a primeira batalha da sua afirmação como mulher, ali iria finalmente expulsar para bem longe o medo que a acompanhara durante todo o dia e assim queimar mais uma etapa naquele precurso sem retorno a que se tinha proposto.

Com passos seguros e ostensivamente de cabeça levantada dirigiu-se lentamente á porta de saída perante o silencio enraivecido e atónito daquela assembleia de algozes. Todos os olhos a acompanharam com as vózes silenciadas. Com pose altiva e desafiante, durante o percurso fixou novamente os olhos por cada um dos presentes. Ninguem ousou sequer pestanejar. Muitos baixaram as cabeças para não a olharem de frente. Sentia-se naquela mulher uma determinação sem limites, intimidatória pela demonstração de coragem. Naquele preciso instante muitos daqueles homens prefeririam não estar sequer ali. Mas não ousaram esboçar mais um gesto ou palavra desabonatório até ela transpor o degrau de saída.

Já na rua respirou bem fundo arqueando o corpo antes altivo como se um enorme fardo tivesse saltado da sua cabeça. Tinha vencido por KO a segunda batalha. Levava na alma as nódoas negras da peleja. Mas levava tambem a certeza de que elas se esfumariam no tempo. Esperavam-na em casa os filhos... e a terceira de muitas outras...