6.10.06

A verdade (copy paste)


Pensara em dizer-lho um milhão de vezes; a vontade de lhe vomitar em cima o que acontecera naquela noite, assaltava-o nos momentos mais estranhos: enquanto ela lia uma revista sentada na sanita, cortava as unhas dos pés ou pintava as das mãos, ou enquanto desembaraçava o cabelo em frente ao espelho. Era como se a insignificância dos rituais diários dela pudesse, de alguma forma, tornar pequeno e de somenos aquilo que ele lhe queria revelar, como se fosse algo igualmente mecânico e descartável, venha daí outra coisa qualquer e sigamos para bingo.
Uma vez, pensara em dizer-lho enquanto ela se depilava numa operação demorada de cera a frio. Olhava-a, febril (ela, concentrada que estava naquele timing perfeito do espalha-arranca), antevendo o momento em que lhe despejaria em cima o seu balde de revelações sujas, qual porteira distraída. O que ele não supunha era que ela, careca de saber da angústia culposa que lhe roía as noites, se concentrava sempre um bocadinho mais nas unhas, nos pés, nos cabelos e se mostrava totalmente indisponível para a abébia que ele queria que ela lhe desse. Se entrava na casa de banho, ela saía de rajada em busca de um creme esquecido e, se se sentava ao seu lado na cama, a ela, assomava-lhe um sono súbito que lhe toldava a percepção. Outras vezes, quando ele estava quase, quase, lembras-te daquela noite em que eu..., ela atalhava, ceifando-lhe as palavras tossidas por entre suores frios, passas-me o papel higiénico, por favor?, ao que se seguia uma reflexão sobre a pasta de papel e o seu peso nas indústrias poluidoras. E ele lá ia adiando a confissão, adiando uma e outra vez, aquele menir que lhe esmagava o esterno sem quase o deixar respirar.
A hipótese de não lho dizer de todo nunca se colocara, pois ele era daqueles que cultivava a verdade a qualquer custo, que a mimava e alimentava como a uma filha ou a uma planta, gerada que fora no seio dos pergaminhos familiares. Assapado no totalitarismo do conceito de verdade como sendo algo de absoluto e válido por si só, escapou-lhe a evidência: de que a dita também pode correr subterrânea, como um lençol freático que segue manso e não deve vir ao de cima nem, muito menos, jorrar tipo geiser, sob pena de inundação diluviana dos sentimentos e de todos os seus anexos. Não intuiu, ele, que alturas há em que a verdade, para o ser, basta ser pressentida, sem precisão de se exibir nua num striptease de perna aberta à volta de um varão, em exposição pornográfica e a arfar sobre os clientes os seus sonhos distantes; e provou assim desconhecer o poder de devastação nuclear de uma verdade que se queria calada - um poder, destruidor não apenas dela própria, mas também de todas as outras verdades que a vida deles transportava em compartimentos interiores e malas de viagem e que, num segundo, se desfizeram em poeira atómica.
Ela tentou dizer-lho: a cada vez que desatava a discorrer sobre o peso do papel higiénico no meio ambiente ela estava a avisá-lo, a enviar-lhe sinais para que guardasse as palavras bem embrulhadinhas dentro dele, para que as dobrasse em quatro, depois em oito e por fim em dezasseis, para que fizesse com elas um quantos queres, um avião, um barquinho ou uma bola de cuspo, e as atirasse ao ar ou lhes puxasse fogo, que ela não as queria. Só que, quanto mais ela fugia, mais ele corria atrás dela, desalmado, a desfraldar-lhe a história daquela noite em estandarte, um vozeirão épico de valquíria a querer sair-lhe do peito e ela sempre a tapar os ouvidos, lailaraiquenãoqueronemsaber.
Que burro fora, ele. Sempre com a boca cheia de verdade, para aqui e para acolá: sobrevalorização nítida. Falta de senso. De sentido das proporções. De instinto de sobrevivência amoroso. Não teriam sido as fugas dela mais do que suficientes para o redimir? Não poderia ele ter visto, na mímica perfeita do silêncio dela (um silêncio atulhado de futilidades) o perdão e a fuga em frente, o beijo do esquecimento, a passagem secreta para os dias seguintes? Poderia... mas não o fez.
Um dia, enquanto ela se secava à pressa de um duche tardio, ele cercou-a e disparou sem dó nem piedade, lembras-te daquela noite em que eu... E ela, apanhada de surpresa entre a água que lhe escorria e a procura dos chinelos de quarto, não foi a tempo de sacar assunto e viu-se obrigada a engolir a verdade com todos os acompanhamentos, batata frita, arroz e salada, uma anoréctica forçada ao alimento. Uma verdade de merda, diga-se: estúpida, como tudo o que é fortuito, e inútil, como tudo o que nada significa de facto.
Pôs-lhe as malas à porta e nunca mais se viram.
Epílogo.
Ele sentiu-se culpado, mas nunca percebeu que o crime maior que praticara não fora o da traição mas sim o da soberba, ao arrogar-se uma superioridade moral sobre ela (que não detinha): ele contara-lhe a verdade daquela noite vazia, não porque achasse que ela merecia sabê-la, mas por uma questão de princípio; não porque a respeitasse acima de todas as coisas, mas porque não se podia permitir perder o respeito que sentia por si próprio.
Ela, por sua vez, não desarvorou em fúrias de mulher enganada nem em gritarias de culebrón (coisa que nem lhe faria o género); passou, apenas, a olhá-lo como o que ele realmente fora: um idiota perdulário, um pobre esbanjador, que deitara fora tanto por tão pouco. No fundo, limitou-se a achar que ele (não fora aquela rectidão transpirada por todos os seus poros, sempre tão honestos e verticais), poderia mas era ter enfiado a puta da verdade em vários outros sítios, que não entre eles os dois. Básicamente.
Copiado de um texto anónimo recebido por email